oi, sumida!
(ou belo horizonte, os fios e uma língua estrangeira)
sim, sumida no caso sou eu. e eu sinto muito.
mas agora eis-me aqui de volta, essa sou eu tentando contato. então: oi.
a ideia é, no último dia do mês, registrar algumas coisas por aqui: o diário de escrita do meu romance, referências (livros e álbuns, principalmente, influenciada pelo quartinho*, evento musical em bh que tenho promovido junto com uma amiga), cidades (!!!) e, de vez em quando, textos autorais.
então, vamos por partes:
diário de escrita - cap 1: por onde começar a escrever um romance?
eu não sei, não tenho a mínima (!) ideia. estou tentando, apesar disso, o que me leva para a próxima pergunta:
por que escrever um romance?
são muitas possibilidades, imagino. lygia fagundes telles disse em uma entrevista que é uma questão de ouvir o chamado, o vocatio, como ela mesma diz. mas pode ser que ela tenha dito o que aconteceu com ela, não o que acontece com outras pessoas. e existe uma diferença abismal entre dizer o que acontece comigo e o que eu suponho que aconteça em geral. então, aqui eu vou escrever o que acontece comigo. a minha jornada na escrita e, especialmente na escrita desse romance que tem sido meio tortuosa.
escrevo poesia desde os sete anos, mais ou menos. acontece que escrever poesia é o meu lugar de conforto até porque é o que eu comecei a fazer primeiro.
no fundo, acho que escrever poesia é mais ou menos como falar português brasileiro. é instintivo, já sei mais ou menos como fazer, já tenho meu sotaque, meu ritmo de fala, palavras que eu uso sempre e palavras que eu odeio. existe uma relação afetiva que é, antes de tudo, muito antiga. eu estou testando poesia há mais de vinte anos, então me sinto confortável nessa língua que aprendi a falar primeiro.
escrever um romance, por outro lado, tem sido mais ou menos como aprender uma língua estrangeira. é preciso aprender o vocabulário, a conjugação dos verbos, o ritmo. ir falando aos tropeços, ficar feliz quando te entendem, mesmo que seja uma coisa meio básica. escrever um romance é falar uma língua estrangeira, pelo menos pra uma poeta.
no fim, acho que ser artista também é não saber o que fazer, até porque não tem muito pra quem perguntar. o melhor conselho que a gente recebe são dos amigos escritores que a gente vai fazendo pelo caminho, e das pessoas que a gente admira, ou seja, escritores que vieram antes. mas no fim quem decide é você.
uma vez, inclusive, recebi um conselho muito bom do marcelino freire, numa oficina que fiz com ele: você é escritora, você faz o que tem que fazer.
é isso, escrever um romance sou eu fazendo o que eu tenho que fazer.
referências de março
ano passado percebi que, apesar de ler muito e ouvir muitos discos (muito pelo quartinho, inclusive), acabei focando muito um determinado gênero ou assunto ou estilo e acabei deixando muito livro&disco pra trás. pra não correr esse risco, este ano resolvi listar algumas obras que quero conhecer por mês.
em março, as escolhidas foram:
livros:
- romancista por vocação, do murakami - alguns pontos interessantes, mas não recomendo super pra quem está procurando um caminho ou um método na escrita de um romance
- finde mundo, da lígia souto - esse vai sair resenha na cidade poética em breve, então sem spoiler (!)
- kitchen, da banana yoshimoto - gostei muito desse jogo de leveza e melancolia. existe uma beleza na vida cotidiana acontecendo, mesmo que de forma bem trágica às vezes.
&discos:
maestro (1972), do moacir santos - a gente ouviu no quartinho esse mês (inclusive <3). eu gostei mais do coisas (1965) (se você nunca ouviu, ouça), mas confesso que quando ouvi o maestro no quartinho, o som encheu o ambiente de um jeito que me deixou profundamente emocionada.
troupeau bleu (1974), do cortex- quando tenho um dia ruim, minha vida fica bem melhor quando lembro que alguém, no caso o pessoal do cortex, teve a generosidade de gravar esse disco. (obrigada)
missa dos quilombos (1982), do milton nascimento - estou tentando ouvir todos os discos do milton nascimento em ordem cronológica. esse disco, pra mim, é o mais subestimado dos que ouvi do milton nascimento até agora. é gênio mesmo (mas isso também a gente já sabe)
inclusive, a playlist que estou fazendo com 3 músicas por disco do milton nascimento (estou escolhendo as 3 que mais gosto de cada disco pra refletir sobre o disco depois de ouvir):
e os fios?
dessa vez, muito porque estou ocupando o espaço (e me sentindo confortável) resolvi deixar a cidade no fim. a minha cidade. belo horizonte.
é um desafio trazer uma cidade pra dentro de um texto porque a cidade tem cultura, história, memória, tem seu próprio tempo, seu ritmo, seus desafetos. mas, mais do que tudo, a cidade tem uma coisa que é difícil de trazer pro texto: multiplicidade.
uma cidade são muitas, incontáveis, e é muita pretensão minha achar que a cidade que eu vivo é a mesma que outra pessoa vive. eu me pergunto então em que lugar essas várias cidades se encontram. o que é comum em todas (ou muitas)?
imagino que sejam várias respostas, mas uma que meio veio recentemente foi: os fios. belo horizonte (como muitas outras cidades do brasil) é atravessada por fios elétricos. e eu odeio esses fios elétricos. odeio tanto que comecei a andar pela ruas olhando mais pra cima do que pra baixo. odeio tanto que comecei a tirar fotos desses fios e agora tenho centenas de fotos disso no meu celular.
odeio tanto que penso muito sobre isso a ponto de concluir uma coisa: vivemos embaixo de um céu retalhado. primeiro retalhamos a terra em lotes, mas o céu é mais difícil de dividir. e se passarmos os fios pelo céu todo, alguém pensou. e pronto, dividimos o céu de qualquer jeito.
o privilégio de olhar pro céu sem margem é de quase ninguém. e eu fico me perguntando como seria essa cidade se o céu fosse, de fato, aberto.
até o próximo mês, o próximo texto. volto em breve com mais escrita, cidade e música.
(e não se esqueça de me responder. essa sou eu tentando contato, então me conta o que você achou de tudo isso)
até breve :)
*quartinho é um evento de música aqui de belo horizonte que eu e a fernanda almeida fazemos todos os meses na quarta quarta-feira. nós ouvimos um disco de música brasileira do começo ao fim em algum bar da cidade, depois conversamos sobre o disco e a experiência. acabamos de fazer a 14ª edição em março.





A respeito da multiplicidade das cidades e do que é comum em todas as beagás:
I. Sociologia urbana
Para além das disfuncionalidades da fiação elétrica aérea, principalmente em relação à subterrânea, uma metrópole de céu cinzento, já arranhada cinzamente pelas concretudes verticalíssimas, é ainda retalhada — amei sua expressão — por chicotes negros; sim, chibatas, que castigam um céu já tão acinzentado, ou pior, acidentado pelo embate entre o tom mais sórdido e o ar mais tórrido.
Imagine só: o belorizontino, que de manhã polui seu ouvido de babosagem do noticiário, no almoço polui seu esofâgo de ultraprocessados, no trabalho polui suas mãos de graxa, na saída do trabalho polui suas vias áereas de carbono, ainda haverá de poluir suas retinas — já tão fatigadas — de fios que infestam o belorizonte.
II. Cidades invisíveis
Gostei da sua pergunta "em que lugar se encontram e o que é comum em todas as [belorizontes]?
Não sei se você o conhece e se já o leu, mas aqui gostaria de trazer dois trechinhos de duas das "Cidades Invisíveis", de Italo Calvino, para acrescentar às suas dúvidas — não tenho nada a acrescentar quando se trata de respostas :)
i. TAMARA
O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara [belorizonte], não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes.
ii. CLOÉ
Em Cloé [belorizonte], cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se veem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.
Da sua reflexão sobre o romancear, penso em C.D.A, que teve uma vasta obra poética, mas não escreveu sequer um romance: o ineditismo do romance é um desafio homérico para um poeta de carreira que tem síndrome de autoliricismo. Penso, também como poeta, que o poema traz segurança: agasalha-nos em sua plena liberdade. O poemanárquico da nossa era literária é desamarrado, é irreverente, no sentido que contesta quaisquer regras que o burocratizem. Em contraste, o romance é o irmão que não pode ser pródigo, que tem que plantar direitinho para que a colheita seja proveitosa.
Outra coisa: por mais íntimo que seja um poema, penso que o romance é que desabotoa o que somos e nos desnuda para quem lê; afinal, personagens e estórias não seriam as outras faces das personas e histórias de nós mesmos?