tenho cantado muito pra minha sobrinha de quatro meses. talvez por uma inexperiência minha, de nunca ter cuidado muito de bebês. talvez porque parece que ela presta muita atenção quando a gente canta pra ela. a minha sorte toda é que lembro de muitas canções da minha infância (talvez eu também prestasse atenção quando era bebê), tanto que acho que minha lembrança mais antiga é uma canção que minha madrinha cantava pra mim.
bebês são seres mágicos e misteriosos. minha sobrinha tem uma capacidade absurda de foco, enquanto brinca com as mãozinhas ou se distrai mordendo algum brinquedo, se alguém chega perto ela desvia naturalmente a atenção. quando ela olha é de um jeito muito sério, a gente se sente como se tivesse que dizer alguma coisa realmente importante. quer dizer, bebês são meio que uma sessão de terapia. ou talvez isso seja uma coisa da minha sobrinha especificamente.
de qualquer forma, isso de ela olhar tão fixamente começou a me instigar a olhar fixamente também. e não que eu já não tivesse um olhar meio poético pras coisas (acho que a poesia ensina isso), mas eu não sei se estava olhando com atenção suficiente. pra minha cidade, por exemplo.
comecei a (a)notar coisas sobre belo horizonte.
e é interessante esse exercício de olhar ao redor e poder sentir amor e ódio ao mesmo tempo. tentei não anotar coisas óbvias (tipo a desigualdade social ou o descuido público com as ruas), mas anotei coisas óbvias também. o fato é que olhar é importante, principalmente com seriedade. até agora esse texto tem sido meio clichê, mas eu juro que quero chegar em algum ponto. meu ponto, na verdade é como isso se aplica à escrita.
outro dia eu fiz uma oficina de escrita no instituto abrapalavra, aqui de belo horizonte (recomendo muitíssimo acompanhar!), sobre cidade e microficção. o professor era um escritor mexicano e além de toda a questão técnica importantíssima, duas partes foram fundamentais nesse processo de formação: uma, as referências latino-americanas que ele trouxe e que eu desconhecia. outra, a forma como ele, aos poucos, ia revelando suas impressões sobre a cidade. a minha cidade. não que não seja dele também, mas essa ideia de ver uma pessoa falando sua perspectiva sobre uma coisa que você já acha que conhece intimamente é muito interessante. pensei, talvez minha cidade não seja a mesma que a dele. concluí, depois, que realmente não é. não tem como ser. pra todas aquelas pessoas fazendo a mesma oficina que eu, a cidade não se repete nem uma vez. nem pra mim mesma. cada vez que saio de casa ou olho pela janela, é uma cidade nova que encontro. talvez, por isso, seja importante manter, pelo menos de vez em quando, o olhar sério da minha sobrinha.
é óbvio que não é possível olhar o mundo sempre com o olhar de um bebê, afinal de contas, sou uma mulher adulta. isso implica que, minha relação com o mundo passa por vários lugares além do olhar: pela linguagem, pela experiência, pela memória, pelo desejo, pelo corpo. enfim, eu tenho muito mais ferramentas pra me relacionar com o mundo do que uma bebê de quatro meses simplesmente por que sou trinta anos mais velha. por outro lado, talvez o fato de ela ter pouco repertório faça com que explore mais profundamente as ferramentas que tem.
isso, naturalmente, também se aplica à escrita criativa, mas antes, uma viagem. tem uma canção do lô borges e do márcio borges que sempre me pegou muito. ela se chama “tudo o que você podia ser” e faz parte do repertório do clube da esquina. já foi gravada pelo milton nascimento e até pelo seu jorge. se você não conhece, a letra tem umas passagens que sempre me pegam muito. por favor, me perdoem pelo crime terrível que vou cometer, mas juro que é pra efeito ilustrativo.
a canção começa com “com sol e chuva/você sonhava, que ia ser melhor depois/você queria ser o grande herói das estradas/tudo que você queria ser” um trecho que eu acho lindíssimo por si só, essa ideia de que a gente quer ser grandioso, que quer chegar logo na parte boa. depois a letra emenda com um “sei um segredo/você tem medo, só pensa agora em voltar/não fala mais na bota e no anel de zapata” que também é muito incrível. a gente tem desejo, quer ser grandioso, mas também tem medo, também quer voltar atrás. e tá tudo bem deixar de ser meio revolucionário e querer mudar o mundo, só querer voltar pra casa. depois, “não se lembra mais de mim/você não quis deixar que eu falasse de tudo/tudo que você podia ser, na estrada” aparece o título “tudo que você podia ser” que dá o peso hipotético pra canção. e, finalmente, “sol e chuva na sua estrada/mas não importa, não faz mal/você ainda pensa e é melhor do que nada/tudo que você consegue ser ou nada”.
no fim, eu acho, é isso mesmo. aceitar que a jornada tem partes boas e ruins, e tudo bem, a gente é o que consegue ser. não o que queria, não o que podia, não o que devia. mas o que consegue. ou talvez seja tudo isso junto. eu não sei explicar o tanto que gosto dessa música, o tanto que acho bonita e potente e poderosa essa canção. penso nela desde que ouvi pela primeira vez, tanto que acho que a canção tem envelhecido comigo.
eu sei que cometi um crime terrível aqui: interpretar letra de música. ainda mais uma que é tão grandiosa e que não é minha. mas essa minha perspectiva sobre a letra, acho, ilustra a ideia de que a gente muda muito a perspectiva sobre as coisas.
isso aconteceu comigo incontáveis vezes. por exemplo, quando eu era criança, odiava carlos drummond de andrade. e odiava milton nascimento. e caetano veloso. que ousadia a minha (!). mas mudei minha perspectiva profundamente (!!!) sobre os três, em momentos diferentes da vida.
drummond, odiava porque desde criança ouvia todo mundo falar sobre aquele poema da pedra. eu achava chatíssimo (confesso que ainda acho um pouco) e peguei birra. só fui desfazer o ranço quando vi um trecho de “procura da poesia”, um poema dele sobre a produção poética, numa prova da escola e fiquei emocionadíssima. sério, quase comecei a chorar, achei tudo sem importância, principalmente o resto da prova, porque o fundamental estava ali, naquele trecho de poema. quando cheguei em casa, achei o “antologia poética” esquecido no box da garagem (a gente tinha tanto livro em casa que tinha que deixar alguns guardados) e fui ler imediatamente. chorei o livro inteiro. acho que estou chorando até hoje.
milton nascimento também me pegava pouco. eu tinha birra de “coração de estudante”, a música dele que mais conhecia porque minha vó gostava muito. achava chato mesmo. aí um dia ouvi “travessia” sem querer na rádio, chorei horrores (eu devia ter uns treze, catorze anos) e entrei no limbo do clube da esquina que nunca mais parou. tanto que até ouvi a discografia inteira do milton e escrevi sobre.
e caetano eu só comecei a gostar no início da adolescência depois que minha professora de teclado me deu um songbook xerocado, metade tom jobim, metade caetano veloso. um dia eu me rendi e fui aprender a tocar “a rã”, a única música que reconhecia no meio das outras dele. também foi um caminho sem volta. ou talvez tenha sido um caminho com volta, porque a primeira direção que tomei foi aversão, ou a indiferença, sei lá.
fato é que a gente tem o direito de mudar de ideia. aliás, é um privilégio imenso poder olhar de novo. poder mudar a primeira impressão (ou a segunda, terceira, quarta, quinta). sobre escrita criativa, a coisa é mais ou menos parecida.
esses dias, mais uma vez, me senti meio culpada por não ter avançado muito na escrita do romance. depois, fiz as contas e descobri que comecei a escrever poesia com sete, oito anos. só fui publicar pela primeira vez aos vinte. isso me deu mais ou menos doze anos de aprendizado sobre meu próprio processo poético e que tipo de poesia eu queria colocar no mundo. então, basicamente, eu também preciso me dar tempo de aprendizado na prosa. olhar de novo pra essa questão me deu uma paz imensa.
até resolvi recorrer a um recurso da escrita criativa que se chama “tempo de gaveta”, mas eu prefiro chamar de “tempo de decantação”. tempo de gaveta significa deixar seu texto guardado, depois de um tempo recuperar esse texto e daí ver se funciona ou não, se faz sentido ou não, com esse distanciamento emocional do autor. o tempo de decantação, pra mim, é esquecer o texto um tempo e ver o que sedimenta. o que depois de um tempo boia ou fica no fundo. o que fica no fundo é que é o texto de verdade e, diferentemente do tempo de gaveta, o tempo de decantação pressupõe que o texto vai sofrer modificações e que ele não está no aguardo, impassível, mas que aquelas palavras vão se modificando ao longo do tempo. ganhando e perdendo peso, ou sentido.
sobre cidade, textos e referências, queria te dizer que o tempo passa e as coisas mudam. talvez, mais que tudo, a gente mude. mas também é importante aprender a olhar pras coisas com o olhar novo. olhar de novo. mas na próxima vez que fizer isso, tente fazer com um olhar atento, firme. com sorte, com o olhar muito sério de um bebê. <3
referências de junho
junho foi um mês incrível, serei imensamente grata. teve, por exemplo, quartinho #17 ouvindo cátia de frança. mas acho que tenho escrito muito e estou testando minha própria objetividade, então duas referências:
— música
20 palavras ao redor do sol (1979), da cátia de frança. na verdade, recomendo a obra inteira da cátia, inclusive o último “no rastro da catarina” (2024) que foi até indicado ao grammy latino. o “20 palavras ao redor do sol” é muito inspirado na poesia de joão cabral de melo neto (o nome do disco vem do poema “graciliano ramos”) e nos textos de guimarães rosa e josé lins do rego. fora que tem sonoridade incrível, sendo até considerado precursor do manguebeat. também tem participação de sivuca, dominguinhos, bezerra da silva, lulu santos, amelinha, elba ramalho e direção musical do zé ramalho. sério, se você não ouviu ainda, por que você não ouviu ainda??? (sem julgamentos, mas a essa altura acho que você já devia ter se convencido rs)
— literatura
o livro da maria caram “próxima estação/next estation” (2025) vai ser lançando dia 04.07 aqui em belo horizonte. o disco tem várias playlists incríveis, a maria tem uma relação muito forte com música (eu vou até participar do lançamento, numa conversa sobre música e literatura). o livro é um romance extremamente fluido e musical, li de uma vez só. recomendo (!!)
tchau, e até o próximo texto. o próximo e-mail, essas coisas. <3